terça-feira, 24 de março de 2020

Concurso de Leitura 2020

Aqui está a selecção de poemas, conforme prometido há uns dias! Inspirem-se! Aos vossos Diretores de Turma (2º e 3º ciclos da EB 2, 3 das Olaias) vai chegar a informação, através de email, de que devem contactar todos os alunos, inscritos e não inscritos, inicialmente.  Pretende-se que transmitam o endereço deste blogue e que comuniquem que podem participar no Concurso com o envio de um vídeo, declamando um poema desta selecção ou outro à escolha, podendo mesmo procurar os que se encontram já neste blogue, em mensagens anteriores.
No vídeo deve vir a identificação do  aluno, o título do poema e o nome do seu autor.
Podem inspirar-se nos vídeos publicados aqui recentemente. Peçam ajuda, se for possível, a alguém do vosso agregado familiar. Era bonito de se ver, aproximação, partilha, ajuda em tempo de isolamento! Que não pode nem deve ser tempo de solidão! Porque precisamos sempre uns dos outros!
O envio do vídeo deve ser feito para o email da Biblioteca Escolar: olaiasbiblioteca@gmail.com
Desafio aceite?
Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
 
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
                                                                                                      Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'


As Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

                                                                                                 Eugénio de Andrade, Antologia Breve, 1972

De que Serve a Bondade

De que serve a bondade
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?
2
Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!
                                            Bertold Brecht, in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'



DA MINHA ALDEIA

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro
                                                                                           

A nêspera

Era uma vez uma nêspera
que estava parada, calada
sentada à beira da estrada
a ver o que acontecia.

Veio uma velha e disse:
Olha uma nêspera!
E zás, comeu-a.
 
É o que acontece às nêsperas
que ficam paradas, caladas,
sentadas à beira da estrada
a ver o que acontece.


Mário-Henrique Leiria
Tudo ao contrário


O menino do contra
queria tudo ao contrário:
deitava os fatos na cama
e dormia no armário.

Das cascas dos ovos
fazia uma omelete;
para tomar banho
usava a retrete.

Andava, corria
de pernas para o ar;
se estava contente,
punha-se a chorar.

Molhava-se ao sol,
secava na chuva
e em cada pé
usava uma luva.

Escrevia no lápis
com um papel;

achava salgado
o sabor do mel.

No dia dos anos
teve dois presentes:
um pente com velas
e um bolo com dentes.
Luísa Ducla Soares

As mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.

Com mãos tudo se faz e se desfaz.

Com mãos se faz o poema – e são de terra.

Com mãos se faz a guerra – e são a paz.



Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.

Não são de pedras estas casas mas

de mãos. E estão no fruto e na palavra

as mãos que são o canto e são as armas.



E cravam-se no Tempo como farpas

as mãos que vês nas coisas transformadas.

Folhas que vão no vento: verdes harpas.



De mãos é cada flor cada cidade.

Ninguém pode vencer estas espadas:

nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre


Liberdade



Sobre esta página escrevo
teu nome que no peito trago escrito
laranja verde limão
amargo e doce o teu nome.

Sobre esta página escrevo
o teu nome de muitos nomes feito água e fogo lenha vento
primavera pátria exílio.

Teu nome onde exilado habito e canto mais do que nome: navio
onde já fui marinheiro
naufragado no teu nome.

Sobre esta página escrevo o teu nome: tempestade.
E mais do que nome: sangue. Amor e morte. Navio.

Esta chama ateada no meu peito
por quem morro por quem vivo   este nome rosa e cardo
por quem livre sou cativo.

Sobre esta página escrevo o
teu nome: liberdade.
Manuel Alegre, A Praça da Canção
 


Regresso



E contudo perdendo-te encontraste.

E nem deuses nem monstros nem tiranos

te puderam deter. A mim os oceanos.

E foste. E aproximaste.



Antes de ti o mar era mistério.

Tu mostraste que o mar era só mar.

Maior do que qualquer império

foi a aventura de partir e de chegar.



Mas já no mar quem fomos é estrangeiro

e já em Portugal estrangeiros somos.

Se em cada um de nós há ainda um marinheiro

vamos achar em Portugal quem nunca fomos.



De Calicute até Lisboa sobre o sal

e o Tempo. Porque é tempo de voltar

e de voltando achar em Portugal

esse país que se perdeu de mar em mar.



Manuel Alegre, A Praça da Canção

  

AS PALAVRAS



Palavras tantas vezes perseguidas

palavras tantas vezes violadas

que não sabem cantar ajoelhadas

que não se rendem mesmo se feridas.



Palavras tantas vezes proibidas

e no entanto as únicas espadas

que ferem sempre mesmo se quebradas

vencedoras ainda que vencidas.



Palavras por quem eu já fui cativo

na língua de Camões vos querem escravas

palavras com que canto e onde estou vivo.



Mas se tudo nos levam isto nos resta:

estamos de pé dentro de vós palavras.

Nem outra glória há maior do que esta.



Manuel Alegre, A Praça da Canção



Letra Para Um Hino


É possível falar sem um nó na garganta

É possível amar sem que venham proibir

É possível correr sem que seja a fugir.

Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.



É possível andar sem olhar para o chão

É possível viver sem que seja de rastos.

Os teus olhos nasceram para olhar os astros.

Se te apetecer dizer não grita comigo: Não.



É possível viver de outro modo.

É possível transformares em arma a tua mão.

É possível o amor. É possível o pão.

É possível viver de pé.



Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.

É possível viver sem fingir que se vive.

É possível ser homem.

É possível ser livre livre livre.



 Manuel Alegre, O canto e as armas


Tempo de Poesia



Todo o tempo é de poesia



Desde a névoa da manhã

à névoa do outo dia.



Desde a quentura do ventre

à frigidez da agonia



Todo o tempo é de poesia



Entre bombas que deflagram.

Corolas que se desdobram.

Corpos que em sangue soçobram.

Vidas qua amar se consagram.



Sob a cúpula sombria

das mãos que pedem vingança.

Sob o arco da aliança

da celeste alegoria.



Todo o tempo é de poesia.



Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.                                                                                         

António Gedeão



Lágrima de preta



Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.



Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado.



Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.



Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.



Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:



Nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

 

António Gedeão





Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.



eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.



Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.



Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.



  António Gedeão, In Movimento Perpétuo, 1956

Amor é um Fogo que Arde sem se Ver

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
                                                                                                           
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" 

Não Posso Adiar o Amor

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas  

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
                                                                 António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa" 

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar... 
                                                                                              Florbela Espanca, in "Charneca em Flor" 

Terror de Te Amar

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
                                                                           Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Obra Poética” 



As Sem Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
                                                                                          Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo' 

A Mulher Mais Bonita do Mundo

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.
 

 entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

                                                                                           José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

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