sábado, 25 de abril de 2020

No 25 de abril de hoje, para não esquecer o de 1974

No 25 de abril de hoje, para não esquecer o de 1974, para recordar e comemorar o que aquela data significa, para não regressarmos a um passado que muitos não viveram mas têm o dever de conhecer, deixo neste blogue as palavras e as canções que têm data, mas que não têm um tempo para serem escutadas. São de sempre!
E hoje lembrei-me de frases que me vêm acompanhando, ditas e discutidas na escola, quando eu era bem menina, muitos, muitos anos atrás: A minha liberdade acaba onde começa a liberdade dos outros e A liberdade é uma responsabilidade. Palavras, como todas as palavras, com a interpretação que cada um lhes queira ou saiba dar! Foi uma discussão aprofundada? Certamente que não, tanto quanto me lembro. Outros tempos!
Não deixemos murchar a festa, deixemos sementes  em muitos jardins!
Numa ordem arbitrária, aqui vos deixo as palavras que escolhi para hoje:


"Poemarma" é um dos poemas de "O Canto e as Armas", de Manuel Alegre, escrito num tempo em que muitos autores - incluindo ele próprio - tiveram livros censurados, viveram no exílio ou na clandestinidade, tiveram poemas manuscritos passados de mão em mão e ditos, proclamados, cantados como verdadeiras armas na luta pela liberdade. (http://www.manuelalegre.com/201000/1/003399,032017/index.htm).
Escrito em 1964, 10 anos antes do 25 de Abril, o poema parece profetizar o que viria a acontecer neste país: “Que o poema seja microfone e fale/ uma noite destas de repente às três e tal/ para que a lua estoire e o sono estale/ e a gente acorde finalmente em Portugal.”

POEMARMA
Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema.

Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês.

Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua.

Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas.
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas.

Que o poema assalte esta desordem ordenada
que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!
Que faça ginástica militar aplicada
e não vá como vão todos para França.

Que o poema fique. E que ficando se aplique
a não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
voltado para dentro. E sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo, o desejo de achar.

E que o poema diga: o longe é aqui
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
Ah que o poema chegue ao pé de ti
e te diga ao ouvido o que é preciso.

Que o poema actue directamente sobre o real
nem que por vezes seja só o poeta em movimento.
Ah que o poema para ser original
transforme em braços e acção o pensamento.

Que ponha sinos a tocar dentro das rosas
e seja mais que rosa flor de cacto.
Que o poema saiba ver dentro das coisas
a mão do homem feita poema em acto.

Que o poema me dispa de tudo o que não presta
e me transforme na sua própria acção.
Nem quero outra glória nem quero outra festa:
morrer como Guevara na Bolívia da canção.

Só tu, povo fardado de ganga azul
poderás dar-me a glória ou recusar-ma.
Aí vai o meu poema
a minha taça do rei de tule
aí vai para ser arma!

Manuel Alegre



Para escutar, aqui, José Mário Branco:


Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades é um poema do séc. XVI, de Luís de Camões, a que José Mário Branco acrescentou o refrão:


E se tudo o mundo é composto de mudança,

Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança.





Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
                                                                                                                                            Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" 


José Afonso aqui:
José Dias Coelho (Pinhel, 19 de Junho de 1923 — 19 de Dezembro de 1961, morto pela PIDE) foi um militante político anti-fascista e artista plástico.
O assassinato levou Zeca Afonso a escrever e dedicar-lhe a canção: A morte saiu à rua.


A Morte Saiu À Rua
José Afonso
 
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação

Jovem e "sem vocação para a morte" como disse Eugénio, de Andrade no poema "Discurso tardio à Memória de José Dias Coelho":
… "Morre-se de ter uns olhos de cristal,
Morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios."…



Adriano Correia de Oliveira, aqui:
Trova do Vento que Passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi meu poema na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(Portugal à flor das águas)
vi minha trova florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
                                                                                                                                       Manuel Alegre, in 'Praça da Canção' 
 

O último concerto de Zeca Afonso em 29 de Janeiro de 1983, no Coliseu.

Vampiros
No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vem em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Versão de Adriano Correia de Oliveira: https://www.youtube.com/watch?v=XY3rhy9AJYA

MENINA DOS OLHOS TRISTES
Menina dos Olhos Tristes,
O que tanto a faz chorar?
-O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Senhora de olhos cansados,
Porque a fatiga o tear?
-O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Hum-Hum-Hum; Hum-Hum-Hum-Hum
Hum-Hum-Hum; Hum-Hum-Hum-Hum
Vamos, senhor pensativo,
Olhe o cachimbo a apagar,
-O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Anda bem triste um amigo,
Uma carta o fez chorar.
-O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Hum-Hum, etc.
A Lua que é viajante,
É que nos pode informar
-O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
O soldadinho já volta,
Está quase mesmo a chegar.
Vem numa caixa de pinho.
Desta vez o soldadinho
Nunca mais se faz ao mar.
Hum-Hum, etc.
Reinaldo Ferreira
Porque o Brasil também viveu a ditadura, aqui ficam as palavras das canções de um dos seus grandes nomes da cultura, Francisco Buarque de Holanda:

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal



Em Tanto Mar, Chico Buarque faz uma leitura da situação do Brasil e de Portugal à data do 25 de abril de 1974, na primeira versão, e posteriormente a essa data, na segunda versão:


Tanto mar
Chico Buarque
1975(primeira versão)*

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

* Letra original, vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.                    
1978 (segunda versão)
 
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Não deixemos murchar a festa, deixemos sementes  em muitos jardins!


 


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